24 de fevereiro de 2007

heróis

In the dark - Erdogan Atilla
Se algum dia souberes murmurar as lendas que o teu coração encerra, que sobre pedras cortadas e moldadas pela chuva se revelam serás, então, um vadio. Um vadio que irrompe pela loucura, a chama pelo nome mudo enquanto cofia no queixo confiante a barba de dois dias, serás um vadio daqueles que as promessas escolhem, daqueles que o nevoeiro revela pela manhã, daqueles a quem o coração bate cem mil vezes mais. E vadio porque indecente aos olhos de quem mais não vê do que os seus próprios passos grosseiros pela estrada construída há anos pelas mãos de um pedreiro bêbado. Vadio porque serás, na boca de quem não te sabe, o degredo culpado pelas noites claras, o corpo maciço que ilumina as escrituras que um dia apareceram nas estantes montadas. Vadio porque sabe que as palavras lançadas não serão colhidas antes do tempo, antes que o sol nasça e as flores se tornem ruivas ao piar dos pássaros. Serás um vadio de coragem, daquela coragem imensa que há nos filmes, daqueles sem casa, sem rosto, mas com asas, com asas abertas a esconder da sombra os outros cegos que te apontam aos olhos com as lágrimas a quebrar o caminho para voltar, um vadio daqueles com as mãos vazias mas os bolsos cheios, daqueles a quem o vento venera e curva o olhar ao passar, daqueles a quem a solidão abraça e acolhe à noite, enquanto os outros se rebolam nos corpos das amantes, daqueles a quem os marfins afiados espetam fundo no coração gigante quando a recordação vem envolta em filme transparente.
E quando estiveres cansado de seres o mundo, de contares as lendas que o teu corpo manda, de teres a tua mente acesa, quando sentires as costas pesadas das cordas que ancoram todo o céu à tua dor e as pálpebras carregarem toda a infelicidade que te destrói, aí abre as mãos, apanha o ar que te rodeia e engole-o, como a um chã anestesiante, fazendo explodir o teu coração grande demais. Risca das certidões o teu nome sujo, apaga os códigos dos cofres onde guardas o teu vadio, esquece a chave no bolso e continua a caminhar para diante, de olhos quietos, esperando que alguém te vá seguindo, subindo a montanha em direcção ao sol. Para que nem tudo tenha sido em vão.



Ele apeou-se na paragem seguinte. Estava gelado e com fome. Ajeitou o casaco contra o corpo. Sentiu o cheiro a bifanas que saia da tasca. Levou a mão ao bolso, tinha umas moedas e um papel amarelo dobrado em quatro. Guardou o papel, pegou nas moedas e entrou. Afinal os vadios também jantam.

13 comentários:

Anónimo disse...

serão esses os herois?

rafaela disse...

São, Fontez, e são essas as almas que aquecem o mundo, pois desviam os raios do sol das núvens espessas...
beijinhos

mac disse...

É preciso ter coragem para olhar para dentro de nós mesmos e fazermos 1 introspecção sobre quem somos. Há quem não o faça por não ter esse hábito, por não ter tempo ou por não gostar do que irá encontrar. Não serão esses os verdadeiros vadios? Não conhecerem a sua alma e não a aceitarem?

Cinza disse...

Imagem densa a engolir essa supremacia do ser...
Também posso jantar?

rafaela disse...

Puxa uma cadeira e serve-te, Cinza... :)
beijinho

Klatuu o embuçado disse...

Vadios assim... gostaria de conhecer muitos! Com coragem também!

Dark kiss.

rafaela disse...

Às vezes até aos vadios falta a coragem, Klatuu, mas pode ser que depois do jantar também ela se lembre de ser grande...

beijinhos Klatuu,
bom jantar...

Anónimo disse...

Já te tive a oportunidade de dizer que os teus textos são paneleiros até dizer chega, tal como estes tipos que te respondem. São apenas nerds, pseudo-intelectuais, com aspirações à profundidade literária. Que fazer?

Apesar de todos estes factos preocupantes (serão?), existem 3 palavras que me chamaram a atenção para este amontoado de letras com mais falácia que sentido: Bêbado, Vadio e Jantar.

Até aposto que consigo junta-las numa frase linda, com mais profundidade que essa que voces bloggers nerds clamam:
Sou um vadio e quero ficar bêbado ao jantar.

lolol (não me batas)

L. disse...

já não me lembrava de como era bom ter um nada tão cheio nos bolsos..

um beijo para ti,
menina de vidro fundido.

rafaela disse...

Nuno, sabes o que penso... Vai à merda... :p

beijinhos à esquimó...
(sim, vou-te bater!)

rafaela disse...

Luís... :)
obrigada

beijinhos fundidos e encantados...
vou dormir... :)

Klatuu o embuçado disse...

Ainda há heróis? :)

rafaela disse...

Enquanto os consigo contar pelos dedos, cada um na sua causa, há heróis, sim. Mais heróis do que eu esperaria encontrar... :)