5 de abril de 2007

biscoitos de canela

Alice -Dag Hecht

Bati à porta de papel. Ela veio abrir sem pronunciar uma palavra. Desde há muito tempo que era assim dia após dia, um ritual de gestos nus, sem significado aparente, mas com uma necessidade tão metafísica de concretizar que até os lampiões se iluminavam quando escutam o aproximar dos meus passos. Eu entrei sem falar e encostei as mãos aos ouvidos, a evocar o som do mar. Ai aquele silêncio... sempre aquele silêncio... Ela tinha a boca suja das amoras e as mãos cortadas das silvas. A casa de preto era vestida a teias de aranha e as janelas eram de ar, com um cheiro a cebola a refogar e a salsa pendurada em raminhos no tecto de papelão canelado. Os lábios pequenos dela estavam azuis, como quando as nuvens querem beijar o mar e se enrolam, de mansinho, na espuma. As orelhas eram pequeninas e arqueadas, mal se viam na brancura daquela face. A sua voz não conheço. Anos e anos lá vão desde a primeira vez em que entrei naquela casa e nunca ouvi um ruído, um suspiro, uma quebra mal respirada a sair daqueles lábios. Ela intrigava-me, e por isso continuava a passar lá todos os meus serões, por isso e pelo chã de hortelã que ela me oferecia com as mãos pequenas e os biscoitos de canela que tirava sempre do forno àquela hora.
Sempre lhe consegui esboçar o mesmo sorriso de crepúsculo quando ela me estendia aquela mãozinha de biscoitos ainda a fumegar, sempre sem trocar uma palavra. Mas hoje não havia biscoitos… nem chã…
Hoje tudo foi diferente: eu não lhe sorri, não havia o perfume a refogado e, quebrando o silêncio em que eu criava o som do mar, ela falou-me, após anos e anos de visitas ela falou-me. A voz era cavernosa, mas doce... tão doce... Uma voz que dormia há anos, encerrada lá, naquela garganta rugosa, tão adormecida que já nem pedia para sair e, de repente, como se as palavras sempre lá estivessem, ela falou. Inspirou aquele ar a saber a salsa e disse: “Todos os dias vens aqui, comes dos meus biscoitos, bebes do meu chã, sorris para mim, e nunca te perguntaste o porquê de isto acontecer?", eu olhei os meus pés cansados, parei de respirar por segundos e respondi um "Não" baixinho. Ela continuou enquanto me segurava a mão, "
É porque me amas e eu te amo a ti, amo mais do que a este ar e a estas pedras, porque as nossas vidas são fachadas até a esta hora em que nos vemos, até a esta hora em que trocamos as chávenas, bebemos do mesmo chã e das mesmas horas, trincamos os biscoitos da mesma massa, da mesma canela, do mesmo prato, da mesma mão… e tu, tu nunca te tinhas apercebido disso… Todos os dias eu corto as mãos nas silvas para colher as amoras, para que todos os dias me vejas igual, de boca roxa, de feridas nas mãos, para que olhes sempre para cima e nunca repares na perna mais curta que eu tenho, todos os dias mudo os raminhos de salsa do tecto para que o cheiro não mude, todos os dias apanho a hortelã na mesma berma, o preparo na mesma proporção de água, e faço os mesmos biscoitos de canela frescos para que me ames sempre da mesma maneira.”
“E o que é que mudou de ontem para hoje? Para me contares isso, para não fazeres os biscoitos nem o chã? Para não pores a salsa no tecto nem a cebola a refogar?”
“Porque hoje eu
percebi que é por te amar que faço tudo isso…”
“Então Amar é fazer biscoitos de canela e chã de hortelã? É cortar as mãos para apanhar amoras? É pendurar raminhos frescos de salsa no tecto?”
“Porque não?”
“Então também te amo…”
“Eu sei…”

13 comentários:

Anónimo disse...

E na vida, na rotina que se embrenha pelas horas, notar um sorriso, notar um amor... Desejo de todos...
Que post lindo dona moça... Lindo demais.
“Os lábios pequenos dela estavam azuis, como quando as nuvens querem beijar o mar e se enrolam, de mansinho, na espuma.”

Há que sonho... Deixa o mar dançar com as nuvens...

Adorei. Belas palavras como sempre.

Beijos e ótima páscoa.
Saudades.

:****

Anónimo disse...

n tenho jeito para escrever...gostava k visses os meus olhos pa perceberes o quanto gostei deste post e de todo o teu blog. li-o todo a fazer beicinho e com os olhos húmidos ms smp com o espirito a flutuar bem alto. obrigado por mo teres mostrado.****

rafaela disse...

Bill! Que saudade! Saudade de escrever, de ler, de ter toda a gente aqui neste meu cantinho!! :)

E há muitos biscoitos ainda sem mão...
Não é um texto bem escrito, mas foi tão apaixonante a ideia de o escrever que depois não o quis matar com o pensamento a mais.

Ainda bem que gostaste...
És uma das pessoas mais fiéis ao meu blog, tenho muitas palavras a dever-te, obrigada!

Beijos
e Uma Páscoa Feliz
saudades... muitas...

Nandita disse...

Sabes que o teu blog com novidades é como o cheiro de biscoitos acabados de fazer... Chega longe, e atrai ;)
Nunca se sabe ao certo o que são os sentimentos. Se calhar o amor tem mesmo aroma de canela...o prazer de te ler tem o aroma de mil mundos diferentes, todos os que vais criando.
Beijo
Nunca mais ninguem te ve, desaparecida :P

Klatuu o embuçado disse...

Não há brisa fresca como a do amor teenager... Sobraram biscoitos? :)

Dark kiss.

rafaela disse...

Nandita, se não se sabe como são os sentimentos, ou como descrevê-los em palavras, os biscoitos de canela e as amoras conseguem, em carinhos e perfumes, dizer o quanto dói e o quanto sabe bem amar.
Os meus mundos são às cores... às cores e aos aromas. Para os mais requintados há sempre os cremosos e os de pedacinhos. :)

Beijo
vou aparecendo, agora...

rafaela disse...

Sobram sempre, Klatuu, sobram sempre...

O amor é intemporal... :)

Beijinhos

rafaela disse...

A.,
também és kawaii! :)

Obrigada eu
e não agradeças isso!

beijinhos

mac disse...

Amar sempre da mesma maneira...acho que não é possível. Se fosse, o amor seria água estagnada. Mas não; o amor é água viva, que corre de pedar em pedra...

rafaela disse...

Quando és feliz só queres ser sempre feliz... E há uma necessidade de que esse dia, essa hora, esse momento se repita eternamente... Essa é a ideia de felicidade que tenho. Difícil? Muito! Mas a felicidade plena é a concretização do impossível, ou não? :)
Nunca quis dizer que amar era estar estagnado. E este amar não é estar estagnado: é ir colher as amoras, pendurar a salsa, fazer os biscoitos... É uma roda viva, Mac, por isso é que amar por vezes cansa, mas também há maior recompensa? Não creio...

Beijinhos Mac***

André disse...

o segredo do conforto revelado... pequenos detalhes cuidadosamente preparados e escritos...

Anónimo disse...

Este ainda está mais gay...

L. disse...

Sabes que não consigo passar pelo blog sem voltar a ler este texto? É impressionante a forma como me prendeu…

E continuo sem conseguir fazer-lhe qualquer comentário que pareça coerente aos olhos dos outros.

Fica mais um registo de admiração, então.

Um beijo,
dado lá, nas estrelas em que dormes.