2 de junho de 2007

o meu avô

My... new white shoe cords! - George Koutsilieris



Era ele que se sentava, com aquele cheiro a campo, na cadeira de pano listado, de cores feias e velhas que lembro não combinarem. É dele quem recordo sempre ver com a mesma roupa, a mesma boina, as mesmas calças de fazenda cinzento-escuro, o mesmo óleo a pintar as mãos de ter estado a fazer biscates na maquinaria e a ajudar a mulher a tratar dos animais da casa grande.
Não tenho a certeza se ele trocava o casaco pesado porque me lembro sempre de o ver com ele, com aquela cor rompida, como as mãos sujas que trabalhavam todos os dias até à hora em que o ar se torna demasiado pesado para ele se suportar de pé. E, apesar de estar constantemente ocupado na calmaria da vida que tinha, é de quando ele se sentava devagar na cadeira de pano que eu mais o recordo. É naquele eirado de cimento branco, protegido do sol pelas telhas do coberto antigo, de onde se ouvia o cacarejar dos galos e o ladrar dos cães chamando os vizinhos para a merenda, que eu mais o recordo.
Tinha a cara cheia, isso tinha! Cara de quem amava a vida e de quem se sabia cansado e doente, as mãos velhas, com as rugas de quem nunca esperou por um sonho sentado, trabalhadas pelos anos que já nem eu sabia contar, as botas pesadas, de andar a passear pelos campos que amava, vendo se tudo estava em ordem, com o peito inchado de ver pelas sementeiras a despontar na Primavera.
Era também na Primavera que mais tempo passava com ele. As férias da escola, o sol, as piscinas inventadas à pressa no tanque grande onde ela lavava a roupa, com a água gelada, vinda directamente da nascente do monte só para o meu tanque, só para a minha alegria, a arroxear os dedos e os lábios. Depois lembro que me chamava, sempre pelo nome certo, a quem a memória não falhava, e me pedia, com jeitinho, enquanto enxotava as moscas atrevidas, para lhe tirar as botas que «aquecem muito os pés», dizia. Fazia eu sempre a cara de quem, no alto dos meus nove anos, se indignava verdadeiramente por me interromper as brincadeiras só por aquilo, mas a verdade é que o descalçava com vagar, desapertando os cordões fortes, tendo sempre cuidado com os calcanhares pisados, e tirava as meias grossas e cinzentas, oferecidas no aniversário em Março, sempre iguais, apoiando-lhe os pés num banquito de três pernas e lá ficava ele, a comer pão com marmelada e queijo e a ver-me correr para debaixo da laranjeira, para fazer mimos aos cachorritos e continuar a molhar os pés na água.
Também me contava histórias se eu lhe soubesse pedir. Historias de quando trabalhou na França, num trabalho que nunca soube o que era, ou de como aprendeu a falar francês sozinho. Sempre admirei as histórias dele, e a sua coragem por erguer sempre a alma dos outros acima da sua. Sempre senti saudades e sei que não chorei no seu funeral porque espero ainda, de cada vez que olho para o coberto, mais abandonado agora e com menos sol, vê-lo sentado na cadeira que ainda lá está, com o pão de marmelada e queijo na mão, a chamar-me para lhe tirar as botas
.

Este post surge no contexto de um desafio literário, cujo tema é uma Pessoa à escolha de cada blogger. Os desafiados foram:

Absinto, Ashfixia, Beatriz, Bill, Boneca de Porcelana, Clarissa, Conteúdo Latente, Espreitador, Filipa, Ipslon, Isa, João Blumel, Kaotica, Klatuu, Legivel, Luís Teixeira, Maite, Menina dos Olhos de Água, Parrot, Pedro Pinto, Rafaela, Rui Semblano, Ruy Soares, TB, Teresa Durães, Vanessa e Unicus.

16 comentários:

Anónimo disse...

=)*

mac disse...

Fizeste-me lembar do meu avô...

rafaela disse...

Anónimo:

;)

beijinho

rafaela disse...

Mac, as vezes acho que os avôs são todos assim, heróis para sempre!

Que bom!

beijinhos

Beatriz disse...

tal e qual! não há promenor que digas que eu não encontre no meu avó: as roupas velhas e gastas, a França, o cansaço, o espelho que são de uma realidade tão remetida Às nossas melhores memorias:)

Teresa Durães disse...

a geração que marca, ou marcou. seremos iguais para os netos?

gostei do que li

boa tarde

Anónimo disse...

Esses nossos heróis, que nos marcaram pra sempre.
Exemplos de vida... Fiz sobre meu avó também, eles acabem sendo nosso suporte para familia.
Adori seu conto, terno, meigo com palavras de admiração que todos temos.

Simplesmente lindo.

Beijos doce moça e otima semana pra tu.

:*

Klatuu o embuçado disse...

Belo texto, menina!
Dark kiss.

rafaela disse...

Beatriz, os nossos avós, da mesma geração, parecem ser todos feitos de aço para aguentarem a vida dura, e de alma, para ensinarem aos netos como se vive e sobrevive...
Temos sorte, Beatriz, temos muita sorte... =)

beijinhos*

rafaela disse...

Espero que sim, teresa, espero mesmo, porque os valores que ele me passou ficaram tão bem guardados que nem as grandes mudanças os apagarão! E, afinal, é de valores que se fazem os Homens!

Obrigada
beijinhos*

bom resto de semana

rafaela disse...

Bill, que saudades!
:)

Sim, esses nossos heróis que deixam marcas mais profundas e mais belas do que alguma vez imaginaríamos possível. Mesmo sem gestos de carinho exorbitantes sei que ele gostava tanto de mim como eu dele!

É o meu exemplo de vida, o meu herói, aquilo que eu quero ser quando "for grande"...

Beijos, querido Bill,
e uma semana cheia de heróis!

L. disse...

Como precisava de te ler… às vezes não sei como sobrevivo tanto tempo longe deste mundo de papel roxo que nos dás.

Um beijo, amiga,
continuas grande!

rafaela disse...

Klatuu,
as letras fazem-se de vidas, e as vidas de sonhos..

=)

beijinhos
**

rafaela disse...

Luís, ^^

cada um sonha da cor que os outros que já o foram o pensam pintar...

tu já me deste o roxo... e os lábios... :)

O meu arco-iris já não está tão cinzento... graças a ti!

(P.S.: cresci 3 cm!) xD


beijinhos de saudades


...muitas...

daquelas que ás vezes doem...

Íris Gea disse...

Olá...

Resolvi nascer por este mundo estranho de revelada poesia. Sou pequena comparada com os Poetas, mas ousei arriscar!

Tenho-te lido e gosto… gosto muito! Encantas-me! É bom ler sentimentos como os teus…
Quem descreves, doce Rafaela? O teu avô… ou o meu? :o) É que está em cada expressão de ternura, a ternura do meu avô… o teu mimo e o meu!


Um beijo de cor verde pintado…

J. disse...

Que bonito!

Acho que os nossos avós são sempre "aquelas" pessoas, tão distantes mas tão proximas, que lembramos com carinho.

Mal conheci os meus avôs, apesar de ter duas situações com o meu avô paterno muito presentes em mim. Seja como for, não foi uma pessoa que vivesse o suficiente para ser mais do que o avô que mal conheci. E ainda assim, passados quinze anos da sua morte, delicio-me a ouvir a sua campanheira falar dele. E ela, com a idade, repete-se, e eu oiço cada palavra como se fosse a primeira.

É o meu avô.