9 de dezembro de 2006

é Natal, é Natal...

Este é mais um conto de Natal. É Natal, sim...

(agora está tudo igual. Tudo recomeça, tudo se perde e tudo se esquece...)

Lá dentro alguém aquece as mãos à chama da brilhante fogueira acesa, que incendeia os olhos das crianças de vermelho que correm pela casa quente à espera da ceia que as mães atarefadas na cozinha preparam. Os pais lêem o jornal de ontem e jogam às cartas.

Há amêndoas, frutas cristalizadas, rabanadas, rebuçados e filhoses em cima da mesa. «Não são para comer, são apenas para dar cheiro», diz a avó enrugada, com muitos Natais de experiência, sempre iguais e especiais em si mesmos.

As crianças continuam a correr. Querem estar acordadas para quando o Pai-Natal vier entregar as prendas grandes, como se se tivessem realmente portado bem... Nem sabem a sorte que têm. Sempre prenderam os sopros todos que queriam expulsar, eram gordinhos e bem alimentados, não passavam frio e tinham um beijo na testa todas as noites. Eram felizes no aconchego das mães que os prendiam entre a mão com medo que as jarras vazias no lugar do coração e das pernas se partissem a descuido...

De lá de fora ouve-se o ruído dos risos e dos guizos que se tocam de alegria. As canções de Natal ressoam com o cheiro do bacalhau inchado a cozer e as doçarias saíram melhor do que a conta. A casa ilumina-se como uma vela no meio de muitas no bolo da cidade. As árvores, lá fora, enfeitadas a cores cadentes sempre iguais, piscam com o brilho roubado numa cabana de palha a uma estrela a que chamaram guia.

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Lá fora alguém de quem ninguém lembra o nome procura nos caixotes os restos agarrados ao fundo das caixas dos chocolates, ou alguma fatia que alguém achou menos bela do que outra... Fora da janela há alguém com as mãos gretadas e frieiras nos pés, há alguém com um par de meias a menos e sorriso gelado estampado no meio da barba grossa...

Há também um cão. Um rafeiro castanho-comum, com pulgas no dorso que o dono afugenta com a paciência que o tempo dá e o carinho que a mão permite. Encontra no caixote preto um resto de pão com dias, que os dedos tremelicam acesos em duas partes iguais: «Uma metade para ti, outra metade para mim», em troca uma lambidela triste. Não chega. Não poderia nunca chegar.

Ao longe repenicam os sinos uma canção antiga, uma canção de esperança. Para quem? Uma criança nasce em algum lugar. Uma outra morre à fome em algures sem que ninguém a veja.

Abre-se uma prenda gigante lá dentro. Alguém fica feliz, ri e abraça. Alguém vê e sabe que aquela bela prenda se perderá no meio de muitas outras na cave. Alguém lá dentro estoura a rolha de um espumante especial, alguém empanturra bolos caprichosos, alguém aperta a mão envernizada da pessoa ao lado e sussurra «Feliz Natal...».

Lá fora o som do sino soa mais alto. Não há televisões plasma e gritos agudos a ensuredecer a boa nova. Alguém sabe que a manhã será gelada. Alguém está subnutrido e hipotérmico. Não se vêm estrelas-guias no céu, nem tão pouco a Lua, com o nevoeiro cerrado de uma difícil noite igual às outras. Oferece a meia parte do pão ao cachorro. Ele encolhe os olhos vidrados pelo gelo do passeio, enrosca-se aos pés meios descobertos da mão meiga que o afaga e responde com um latido rouco quando ele lhe diz: «Bom Natal, amigo...».

Dois Natais diferentes, separados pelo frágil vidro inquebrável de uma janela...

Um Feliz Natal para ti.

e que estejas da parte de dentro...

Nota:

Este conto participa na 5ª edição dos desafios de criação, em que o ponto de partida, desta vez, é um conto de Natal. Os participantes, que se comprometeram a publicar o seu conto em simultâneo às 21 horas (Portugal) e 19 horas (Brasil) de hoje, são: Ashfixia, Beatriz, Bill, Clarissa, Conteúdo Latente, Espreitador, Ipslon, Isa, Kaotica, Klatuu, Legivel, Luís Teixeira, Maite, Parrot, Pedro Pinto, Rafaela, Rui Semblano, Rui Soares, TB, Teresa Durães e Vanessa.




Os nomes dos participantes estão com o link do blog onde publicam, clique em cada um deles para conferir os contos, tenho certeza que vão gostar.

38 comentários:

Anónimo disse...

Doce moça...

Esse desafio sempre me trás tanta felicidade...
Veja que quase nos encontramos na mesma janela...

E que belo conto tens aqui, visão de uma realidade não só dai como aqui e em todo lugar nesse mundo torto...

Perdeu-se o significado de Natal...

"Ao longe repenicam os sinos uma canção antiga, uma canção de esperança. Para quem? "

Esperança pra nós... Quem sabem possamos mudar... Esperança sempre tem que existir...

Belíssimo... Parabéns

Beijo pra tu pqna

:***

Teresa Durães disse...

Vim li e gostei!

tb disse...

Belo conta. Bela perspectiva sobre a sociedade e o natal desvirtuado.
Parabéns!

Pedro Duarte disse...

Gostei muito do teu texto. Mto sensorial ("bacalhau inchado a cozer" quase me fez ouvir o borbulhar da água e ver grossas postas) e a descrição é quase cinematográfica. Puxa a nossa imaginação e visualizamos as cenas e quase ouvimos e sentimos.

Mto bom mesmo!

(O Natal não mudou. Nós é q mudamos/crescemos...)

José Pires F. disse...

Minha amiga,

Os diferentes natais que existem em todas as sociedades…
Gostei da forma repartida como o fizeste e entendi-a como propositada, para que, houvesse uma maior diferenciação entre estes dois mundos.

Parabéns e um abraço.

Kaotica disse...

Rafaela

Sempre importante lembrar que há dois planos que nunca se misturam a não ser no excesso de sobras no caixote do lixo que afinal sabem a pouco. Tão real, tão real que até doi porque eu já vi essa cena do caixote, do mendigo e da partilha com o cão. E já vi a prenda cara a que as crianças mal ligam e esses dois mundos cada vez mais contrários. Há que alertar porque ainda há muito quem não repare nessa enorme injustiça em que se converteu a Humanidade. Que Natal que nada, há é que acabar com a fome no mundo!, diria Cristo ao mundo, se pudesse!

Klatuu o embuçado disse...

Sem dúvida que tu és da malta da tua idade que anda pelos blogs uma das que escreve melhor... mas isto dos motes é sempre uma treta: coloca freio na inspiração... e eu acho que tu escreves por inspiração...
A ideia é boa e está muito bem escrito... mas falta aquela alma que costumas dar ao que escreves...

Dark kiss.

Anónimo disse...

Ainda bem que pude passar por aqui. Ganhaste mais uma visitante! Gostei muito. Do conto e do blog tb.

Beijinhos*

Clarissa disse...

O Natal é das alturas menos democráticas e justas do ano.
Um beijo grande

rafaela disse...

Bill,
espero que haja ainda esperança, mas a cada Natal que passa tenho mais consciência de que não é tudo mais do que um nada intenso, impossível e linear...

O significado do Natal está no coração de quem dá e de quem recebe... É arte ter-se alma... É fulgurante ter-se vida... É único saber-se aproveitar...

Obrigada amigo de longe,
obrigada por estares sempre lá...

rafaela disse...

Então volta,
e espero que gostes ainda mais de tudo quanto poderei dar...

Beijos, Teresa

rafaela disse...

tb...
Obrigada pela visita...
Foi a minha primeira experiência no Canto de Contos... espero que todos gostem... :)

A realidade não é mais do que uma ideia ou sonho concretizado...Este é um pesadelo de séculos... Há que sonhar de novo...

Beijos, tb para ti... :)

Anónimo disse...

Adorei o teu conto...infelizmente é assim a vida, enquanto uns se divertem e podem-se dar ao luxo de gozar o natal, outros há em que a vida é uma batalha constante, e que apenas podem ficar do lado de fora da janela, a ansiar por umas migalhas...

Beatriz disse...

Quem sabe, um dia, esses filhos do Tudo e do Conforto aprendam a gerir um mundo onde só se comparem iguais, ou pelo menos tentem construir com as suas mãos Natais mais quentes e justos para os que sobrevivem aos Natais de hoje

gostei, paralelo muito bem conseguido :)

Parrot disse...

Rafaela,

Hoje passei com mais calma para ver o teu conto....o Natal também é assim, feito de contadições, possivelmente esse é o mais vulgar.
Parabéns.
Feliz Natal

rafaela disse...

Ainda bem que conseguir tornar tudo um pouco realista, Pedro. Eu tentei transformar tudo numa noite mais ou menos real, para que doesse a sério a imagem. É bom ver que resultou...

Sim, se calhar nós é que mudamos... Mas as mudanças conduzem a outras mudanças e daí a outras e talvez um dia as coisas fiquem mais ou menos equilibradas, e cada um tenha, pelo menos, um tecto onde se esconder...

Beijos, Pedro, e obrigada, obrigada por sentires e veres o meu conto...

rafaela disse...

Caro amigo Pires,
sim, a separação foi propositada, e a janela é como um meridiano entre dois mundos que, afinal, estão tão perto um do outro...

Espero que tenhas gostado da minha participação...

Até um dia,
abraço.

Anónimo disse...

Os dois lados e um nó muito apertado na garganta.
É um vidro. Denso, mas transparente. E assusta.
*

rafaela disse...

Kaotica...
ainda bem que sim, que já pudeste ver essa imagem, porque sim, é dura, mas trazer realidade para a nossa vida só nos faz repensar nas coisas, e isso nunca pode ser mau...

«Que Natal que nada, há é que acabar com a fome no Mundo!» diriamos nós se nos deparasse-mos com estas imagens todos os dias, como eu tenho visto com frequência desde que estudo no Porto...

Fica com os segredos que ninguém quer notar nas esquinas das cidades... Um beijo, obrigada por passares por cá...

rafaela disse...

Klatuu,
é tão bom receber uma crítica tua e entendê-la, ainda assim, como um elogio...
De facto, escrevo muito por inspiração... e sim, senti alguma pressão ao escrever este texto, mas queria, mesmo, escrevê-lo... É o que tenho vivido mais ultimamente... É mendigos na rua, é velhinhos abandonados a pedir esmola, e não estou habituada a ESTA realidade. Tinha outras e sim, tinha a consciência desta, mas agora é tão parte do meu dia-a-dia que se tornou impossível ignorar, ou esquecer que ela estava a contecer enquanto eu tomo o meu banho quente, ou enquanto saboreio os cereais de manhã...

Obrigada, Klatuu
nem imaginas a honra que tenho em receber-te aqui...

Um beijo de Natal...

rafaela disse...

Olá Vanessa...
Serás bem-vinda... ainda bem que gostaste do que tenho... :)

Obrigada, volta sempre...
Um beijo...

rafaela disse...

Clarissa,
que saudades tem o meu blog das tuas palavras e eu das tuas visitas!

Sim, o Natal é tão injusto... Enquanto uns comemoram o nascimento de Cristo (na data errada!), outros comemoram a prenda debaixo da enorme árvore enfeitada...

Um beijo grande
contente por te ver...

rafaela disse...

Querida Mac,
a vida é mais do que a nossa casa e o nosso umbigo enrolado debaixo do ego... a vida é sempre uma batalha constante, seja para quem for, mas enquanto uns lutam por mais uns euros na carteira ao fim do mês, outros lutam por um pão no bolso ao fim do dia...

Obrigada por estares aqui, mais uma vez.
Um beijo e um Bom Natal...

rafaela disse...

Beatriz...
deixaste muita ternura e esperança aqui...
Sim, esperemos todos isso, um dia... Afinal é a esperança e o sonho que nos mantêm acesos e vivos, não é?

Um beijinho,
e boas festas...

rafaela disse...

Parrot,
obrigada por teres passado aqui novamente... :)

O Natal é um dia, apenas um dia, um dia entre 365 dias iguais, mas este é um dia em que se acendem luzinhas a mais e se junta, às vezes com esforço, a família lá em casa...

Obrigada,
obrigada por passares cá, e passares outra vez, com mais calma... Esses são os pequenos gestos aos quais eu dou mais valor...

Um beijo, e um agradecimento enorme...

rafaela disse...

É apenas um vidro, doce Conteúdo, mas é um vidro tão inquebrável e sim, tão transparente...

beijos de Natal,
com renas e tudo (que já é tarde e estar sem dormir faz-me ver renas...)

isabel mendes ferreira disse...

a diferença.


de um certo natal.


bem contado.

rafaela disse...

Todos os Natais são diferentes...

beijo
obrigada...

Joker disse...

As duas faces do natal, mas também da vida que corre o ano inteiro!!!!

Continuas com a doçura na ponta dos dedos...!

Uma beijoka mágica para ti!

Cheers

rafaela disse...

Sim, Magia, isto corre o ano inteiro, mas agora parece mais flagrante...

E tu continuas a impregnar de beleza em tudo o que magicamente tocas...

Uma beijoca, igualmente mágica, para o país das sedas...

Ana P. disse...

Quantas vezes eu não penso nisso?
Por isso mesmo na noite de natal, é sempre bom darmos uma voltinha pela nossa cidade e partilhar as nossas rabanadas. Se todos os que estão do lado de dentro o fizerem, (pelo menos na noite de natal), seria mais reconfortante.

Anónimo disse...

Natal sim! esta proximo, mas devia ser o NAtal todos os dias ;)
bonito post sim dear.

Clarissa disse...

Doce Rafaela... é melhor obrigares o tempo a estar em sintonia contigo ;) É que esse malvado escraviza-nos, por isso temos que nos revoltar ;)
Beijocas

rafaela disse...

Sim, Ana,
belo gesto... Belo e raro...
Se todos, se a parte de dentro saísse um pouco do seu conforto estaríamos todos tão mais perto uns dos outros...

Beijo de Natal,
e parabéns... parabéns e obrigada pelos teus gestos...

rafaela disse...

Obrigada, Fontez,

Um bom Natal para ti também...
Beijos e rabanadas... :)

rafaela disse...

Doce Clarissa,
o tempo dá-me tudo o que preciso para aprender a lidar com ele - ele próprio... hehehe... :)

Prometo que vou estar mais aqui, mais por aí, mais por todo o lado!

Um beijo, doce fada, e um azul cadente nos teus olhos de globo...

Klatuu o embuçado disse...

__________FELIZ NATAL__________

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JAJAJAJAJAJAJAJAJAJAJAJAJAJAJAJAJAJAJA!!!!!!!

rafaela disse...

(sorriso)



FELIZ NATAL também para ti, Klatuu, e para o teu irmão... ;)

beijo