19 de agosto de 2006

carta...

Mona,

um dia sorriste para mim. Trazias em ti a beleza de um pássaro a cantar no alto de uma árvore, nu, sem máscara, sem falsetes, só ele e o seu canto ruivo, a fazer renascer em mim os dias tristes de quem te viu partir. Eu deixei que me afagasses outra vez, como antes, e antes, e antes, e que os teus cabelos longos ferissem em mim e deixassem cicatrizes de sangue, sem que o tempo e a paciência as curassem. Depois partiste novamente, sem me dares uma razão que me fizesse baixar os braços e resignar-me, achando que as coisas alguma vez iriam melhorar... Mas eu sabia, no fundo, a razão das tuas ausências... De facto, conhecia-a melhor do que me conheço a mim... Sabia que irias renovar o teu ar e o teu corpo, que viverias dias sem a água dos meus beijos, afinal não tão fundamentais assim como me fizeras crer, e que voltarias, um dia, para te alimentares, qual gato vadio que transcede os muros em redor para se salvar, mas que sempre a casa regressa para ser salvo.
Um dia destes ainda conseguirei dizer-te adeus com o rancor que espero sentir mas, por enquanto, a ilusão de que me vou embora deixa-me com o coração tão apertado como se tivesse nascido outro corpo inteiro, sem alma, dentro de mim, outro corpo que, sabe, empurra para fora tudo o que em mim há, fazendo esquecer que o corpo é meu e que eu mando.
Dóis-me, sabes? Dóis-me e matas-me com cada toque, como se queimasses viva a minha carne gelada de não te ter. Assassinas-me a cada olhar negro que me penetra nas entranhas fazendo-as silvar, fazendo-as morrer e levando-me consigo. Sufocas-me a cada beijo, prendendo o meu ar nos teus pulmões e fazendo-me implorar pela vida ao teu peito.
Mas já sei como vai ser...
Vou acabar esta carta com a perfeição dos meus desejos, assiná-la enquanto as lágrimas secam com as costas da mão que treme, selá-la com o cântico do pássaro que um dia me fizeste ouvir, amarrá-la com a força toda entre os dedos até que se amachuque e depois... depois perdê-la-ei no meu choro vão, queimá-la-ei com a chama que me mata em ti e prosseguirei, como se nada tivesse sido um mecânico suspiro de indiferença ou um verbo demasiado longo para que eu o pronunciasse.

Espero-te para jantar, então...

Um beijo com o amor que pensei ter esquecido,
sempre teu

14 comentários:

L. disse...

Aviso: comentário excessivamente longo, digno de ser ignorado pelos mais apressados.

Li em voz alta (tom baixo e melancólico) esta carta. E por momentos, confesso, esforcei-me para não acreditar que fora eu quem a escrevera para uma Mona qualquer. A simplicidade comovente com que escreves, torna-te ainda mais bela. Faz-te chegar ao coração, e mais, à mente de quem te lê, independentemente de quem seja. Tocas-me, como tocas outro qualquer. De forma diferente, é certo; mas do mesmo jeito. E que bom é ser tocado por ti. Por essa magia pulcra que emanas em cada suspiro de livre angustia consentida.

Digo mais:
se uma lágrima não me escapa, coisa de que não estou convencido ainda, é de certo porque a réstia de sensatez que mora em mim me puxa, pela camisola, de volta ao mundo dos sonhos reais.

Curvo-me perante ti, bela pintora de sonhos.

Um beijo submisso. Pinta, pinta sempre.

Lord of Erewhon disse...

Tu, de facto, tens imenso talento!
Dark kiss.

rafaela disse...

Rapaz,
de facto, ser elogiada com tamanha veemência e cuidado faz com que os quadros vindouros se empenhem mais para brilharem com a intensidade das estrelas.
Volta sempre, querido amigo, porque sentir-me flutuar nas palavras que me cantas é das mais belas formas de crescer que eu encontro...

Um beijo doce como a palavra

rafaela disse...

Lord,
é tão bom voltar a ter-te por cá e a receber a palavra de quem tão bem a cria... É para mim uma honra receber-te na minha casa...

Obrigada pelas palavras que tão bem fazem ao meu ego :)

Um beijo negro, com a beleza da noite e das pedras...

Anónimo disse...

E ali entre as letras me perco, tropeço nas palavras bem escritas com sentidos tão bem traçados.

O que sempre me atraiu na boa escrita é o poder que ela tem de seduzir a mente, de fazer o pensamento seguir como se aquelas palavras fosse sua vida. Gosto disso pois é uma das essências dos sonhos, um espelho para refletir os desejos mais profundos.

Por isso cada vez que venho aqui saiu mais e mais sonhador, mais e mais feliz por suas palavras.

Claras e poeticamente traçadas.

Obrigado por sempre deixar pingos de vida pra mudar a minha Realidade Torta.

"Tu eras uma ausência que se demorava; uma despedida pronta a cumprir-se".
{Cecilia Meireles}

Ótima semana pra tu moça de alem mar, dona das palavras dos sonhos.

Beijos
:****

Anónimo disse...

Não estou conseguindo dormir então acabei me lembrando de uma frase e me lembrei do post...

"É sempre no futuro aquele pânico...
É sempre no meu peito aquela garra... (...)
E sempre no meu sempre a mesma ausência..."
{Drummond}

:****

rafaela disse...

Bill,
é sempre tão bom abrir as portas da minha alma para quem tão bem a sabe escutar e entender...

Ainda bem que ficas mais sonhador e mais feliz quando por aqui passas, pois enquanto ouver alguém que acredite nos sonhos eles não vão morrer... É como acreditar nas fadas na história do Peter Pan: quem acredita em fadas bate palmas para que elas se salvem... Aqui é a mesma coisa: quem acredita em sonhos e acredita que a magia flutua por aí, em cada fio de cabelo, ansiando ser encontrada, que sorria sempre e que bata sempre palmas...

"Tu eras uma ausência que se demorava; uma despedida pronta a cumprir-se"... que bela frase...

Obrigada pela visita, pelo carinho, pelas palavras, pelo sorriso em que o meu dia se transformou após receber a tua visita...

(Espero que tenhas conseguido dormir direitinho!) :)

Um beijo terno, com a doçura das palavras
e uma boa semana, cheia de sonhos

Clarissa disse...

Querida Rafaela... no meio desta linda carta perdi-me na frase «choro vão» e emtudo o que ela representa, ou talvez para tudo aquilo a que remete e não está explícito aqui na carta. Quantas destas cartas vamos escrevendo ao longo das nossas vidas, a maior parte delas escritas no silêncio dos pensamentos, sem papel, em que a única coisa que rasgada são os sulcos das lágrimas que correm.
Um beijo doce Rafaela, por esta triste beleza.

rafaela disse...

Clarissa,
o meu dia ficou mais brilhante com o teu regresso à minha humilde alma já cheia de saudades de tão ternas palavras...

De facto, quantas cartas vamos escrevendo sem que se preencha o remetente, quantas cartas vamos ridigir na nossa própria memória, nos nossos próprios sentidos, que depois esquecemos de propósito, só para não encarar a possibilidade de ouvirmos os nossos sentimentos gritar...

Mas o choro, se é em vão no estado das coisas, não o é, de todo, no estado de alma, pois alivia a dor e traz novas luzes ao caminho de novo reaberto...

Obrigada por apareceres de novo, isto sem ti não tem tanta graça;)

Que o caminho se livre de choros vãos e que haja sempre papel para que as cartas se escrevam...

Um beijo, doce Clarissa, boa semana

mac disse...

"Longa é a tua ausência"; há pessoas que rasgam a nossa existência, e nada voltará a ser como antes; quantas vezes queremos elevar a voz para libertarmos desse amor obcessivo, que nos magoa, que nos destrói por dentro, e a nossa coisa que conseguimos fazer é murmurar palavras apenas no nosso pensamento, e oferecer de novo, de novo e novo o nosso amor a seu gato vadio...
Belo post, lindo...

rafaela disse...

Mac,
como tens razão, mais uma vez...
e quando esses murmúrios se diluem no ar e no espaço que está à nossa volta, sem que se solte som, parece que tudo se torna repetidamente doloroso, repetidamente frustrante, repetidamente monótono...
Obrigada pelas belas palavras, volta sempre...

Ah... adorei a tua postagem sobre o Ysmael... fiquei sem fôlego...

Um beijo doce, obrigada...

Anónimo disse...

A cada dia que passa,a cada segundo que falo para ti,a cada texto k leio impressionas-me cada vez mais.
És algo que não tem explicação...uma rapariga exelente em todos os sentidos e com um talento enorme.
Adoro ler os teus textos e acredita que não sou grande apreciador da leitura.
Algo neles que me marca muito e s calhar e por isso que os leios vezes sem conta.Todos me tocam bem la no fundo,mas este e um dos meus preferidos.
Continua assim,acredito que podes ir longe.
Beijos de quem te adora

André disse...

Bela carta... o adeus incompleto, o abraço final que não se desprende, o gesto derradouro que aguarda o retorno ao jantar... um poema em forma de carta. Vou linkar seu blog para não mais perder estas belas palavras.

rafaela disse...

André,
é para mim uma honra receber tão belas palavras entregue pelas tuas mãos...
Esta carta é, de certo modo, uma luxúria por parte "dele", pois mesmo podendo abandonar o amor, com dor e coragem, é certo, não o faz com desculpa de uma dependência tanto física como psicológica. Mas sim, é um poema em forma de carta!

Acho piada teres escolhido para ler textos mais antigos... Nunca se sabe o que as memórias nos escondem... :)

Um beijo,
obrigada pelo link... ;)