11 de julho de 2006

pequenas vitórias


Ele voltou-se e olhou para mim.
Com um reflexo afastei-me e recolhi as mãos de volta, enquanto desviava a cara e cerrava os olhos com a imagem a fazer-se em fumo na minha memória.
Ele recuou dois passos e estendeu o braço, como que a pedir-me perdão por ser assim. A sua mão era grande e escura, tinha os dedos longos, as unhas estavam cortadas e limpas, mas a pele era ressequida e estaladiça. Estava queimada e parecia quebrar-se se acaso lhe tocasse. Perguntei-lhe a medo se aquilo doía. Ele respondeu-me que a única coisa que lhe doía era olharem-no como eu o olhava naquele momento. Eu relaxei os músculos tensos, soltei um suspiro de culpa, baixei os ombros e dirigi o olhar envergonhado para um ponto que subitamente se tornou interessantíssimo, um metro abaixo do olhar atencioso que, ainda assim, me fulminava.

Depois de alguns silêncios, olhei-lhe nos olhos e vi a beleza que eles continham e que eu só agora procurava. Tão fechados em si, mas tão abertos a quem os quisesse ver e explorar sem preconceitos. Eram claros, quase transparentes de translúcidos, cristalinos, na verdade contrastavam bastante com o tom sombreado da face deformada.
O tegumento facial era repuxado no pescoço e enrugado na testa. Praticamente não tinha uma orelha, e a outra não passava de um aglomerado disforme de células mortas, com a ponta a indicar o céu estrelado. Tinha uma melena despenteada e suja, mas forte e resistente.
Sentámo-nos numa esteira, cada um voltado para o seu horizonte, descortinando objectos distantes, dando nomes e formas às núvens carregadas que, casualmente, apareciam por ali no céu, a espreitar a conversa silenciosa.
Eu peguei-lhe na mão a medo, senti com os meus dedos a pele macia que se escondia naquela fachada tisnada, arrepiei-me, arrepiei-o, gelei-me, senti-o. Subi a mão até à cara indiferenciada da noite e vi proporção, vi serenidade, vi beleza, vi controlo e senti lágrimas... Lágrimas de verdade... Foi preciso fechar os olhos para ver...

Desprendi também um choro mudo, interior, mutante, com pena de mim, que lavaram as minhas frivolidades e que me transcenderam além da física.

Levantámo-nos, voltamos costas, e cada um deu dois passos até pararmos novamente.


Ele voltou-se e olhou para mim.
Era extremamente belo. Sem penas ou condescendências. Pousei-lhe as mãos na face, deixei-lhe um beijo na testa, e partimos de mãos entrelaçadas, procurando novos destinos mais brilhantes, onde os horizontes se tinham fundido num só...

9 comentários:

Anónimo disse...

Como todo seu blog, há sempre uma pitada de magia, um que de dia se mesclando com a noite...
Perfeito, parabéns pela bela escrita que tens, voltarei sempre para me deliciar com suas palavras.

Lindo dia pra tu

:***

Clarissa disse...

Rafaela... é mais fácil transportarmo-nos para o universo da Bela... o do monstro é mais difícil. Porque não exerimentas dar continuidade a este post com umpróximo centrado no monstro,seres tu o monstro e mostrares os seus sentimentos, o seu olhar. Seguramente daria um belo texto.
Beijo grande

Clarissa disse...

Minha doce Rafaela... não queiras estar à minha altura, queiramos todos tão somente transcender-nos em direcção ao infinito da nossa alma,é ela que nos indica o caminho. É um desafio viver, cada dia,cada minuto... é um desafio ouvir as palavras que crescem dentro de nós e nos sussurram caminhos que desconhecíamos.
Um beijo enorme com um brilho de estrelas.

P.S. Mas experimenta... tenho a certeza que vais gostar da nova experiência. Transporta-te para outros universos que escondes dentro de ti própria.

Barão da Tróia II disse...

Gostava de sonhar como tu.

Cecilia M disse...

Mais um delicioso fragmento...

_+*Ælitis*+_ disse...

Isso é que foi um momento intenso! Gostei mto :)

Beijokas de Paris

Anónimo disse...

Adorei suas palavras doces no meu blog, foi de grande importância cada palavra.
Já te linkei e sempre passar por aqui e sentir essa magia...

Tenhas um lindo fim de semana.

Beijos

:***

"É necessário que o poema brote do silêncio, branco como uma noiva discreta e pálida que todos julgarão ser virgem."
{Alain Borne}

_+*Ælitis*+_ disse...

Obrigada pela tua visita :) beijokas de Paris.

André disse...

Gostei do jogo de aproximidades e afastamentos, do movimento de repulsa e atração, do conhecimento e enfrentamento dos medos. Seu blog é muito bom, merece ser lido inteiro.