15 de setembro de 2006

entre fitas e espadas

Os estandartes abafados aproximavam-se, ao longe. Subiam, nas suas costas, os passadiços de madeira que, pesarosamente rangiam nas correntes e nas roldanas enferrujadas enquanto as esfinges e as bandeiras multicolor eram erguidas no alto, pintando o céu. As quimeras e as bestas, azuis de vontade, foram libertadas, mais por medo de as ter do que por ódio para as soltar.
Empunhou a coragem. Aos medos embainhou-os junto ao lenço bordado e à fita do cabelo gasta de tanto afagar com a mão, enquanto os outros, à noite, dormiam. Ele ainda sentia o perfume que sugava nos lábios e nos dedos, enquanto murmurava as suas próprias preces, para um deus inventado à pressa. Depois de tanto tempo ainda distinguia o doce odor dos cabelos dela do cheiro a suor e a esgoto que tinham, aos poucos, enegrecido a fita branca. Podia já não ver os olhos dela com a mesma nitidez verde mas o cheiro, esse, tão vivo quanto o real, enganava até o próprio pestanejar, que se encolhia de cada vez que ele se assumia, mais ou menos esgotado.
As armaduras, lustrosas, queimavam os olhos. Ao fundo o som das botifarras num passo constante e seco, como um pesado metrónomo encalhado no tempo errado a marcar o ritmo previsto para que a morte se desse. As costas da mão acalmaram o suor que corria da testa alta e um sorriso de sede vingou na cara dura e tostada pela ausência e pela saudade. Dos lábios em fá sustenido pendiam, delicados, a fita e o perfume. O suor ficou frio e estático ao aproximar-se o som da marcha que ele entendia fúnebre.
As flechas obedientes dançaram no ar tal bailarinas ensaiadas, rodando as chamas que iluminavam os olhos abertos do inimigo, numa dança louca e mortal ainda que bela. As mãos esconderam a fita e o lenço como quem esconde o coração num cofre de aço, o perfume, ainda em suspensão nas narinas, aguardava que o ar entrasse outra vez para que se diluísse. Alcançou a espada na cintura. Não confiava mais naquela espada do que nos seus braços e na sua audácia, mas esperava que isso lhe chegasse para matar mais que morrer.
Disse outra ladaínha, referiu um anjo e um arcanjo, um homem-deus e um amén, apertou o cabo da espada adornada a sangue com a força toda que se lembrava de ter e, ao grito de ordem, gritou também, correu para a frente, fechou os olhos, e cortou, com a lâmina seca, tudo o que se mexia à sua volta, todas as gargantas que, incautas antes, agora gorgolejavam rubro ar e pendiam, dengosas, para o chão de terra.

40 comentários:

José Pires F. disse...

Hmmm... Mais uma contista.

Querida Rafaela!

É um imenso prazer receber no Espreitador, leitores da querida amiga Clarissa.
È verdade, respeito e admiro aquela amiga, não só pelo que escreve mas principalmente pela pessoa que é, aliás, a nossa amizade vem de antes de ela se render à faina blogueira e tem vindo a consolidar-se desde aí.

Gostei do teu conto e passarei a visitar-te. Não sou lá muito regular nas minhas visitas, mas procuro não estar demasiado tempo sem dar uma espreitadela por aqueles que sabem e têm coisas para dizer.

Esta minha visita é tardia, devido às “longas” férias que tive e às muitas coisas que se acumularam então, mas já estou a ficar operacional.

Um abraço e votos de um excelente fim-de-semana.

José Pires F. disse...

Ena! Primeiros a comentar.

Bom começo.

public pervert disse...

Agradeço-te por me leres e cada elogio que foste capaz de me dirigir. Cá tenciono voltar cá eu. Escreves bem demais.

Anónimo disse...

Es uma camaleão com a forma de escrita, muda a forma molda as palavras, cada conto que leio tem um som novo, um aroma fresco como se jogasse na tela um sonho virgem, recém colhido dos braços de Morpheus...
Dança de espadas em meio a chuva rubra... Adorei a tudo ainda mais a mescla de música que cá fiquei a pensar no meu violão como uma espada e tocar uma a peça em Dó M...

Instigante que me faz lembrar de muitas coisas boas que já li, fascina a idéia de seguir suas linhas...

Vejo que o amigo Pires foi o primeiro a chegar, pode apostar que isso é um ótimo sinal, Pires e Clarissa me são caros, amigos que conservo a um bom tempo e os tenho aqui no coração, figuras muito queridas como tu já também es.

Acabei de vislumbrar aqui tu no próximo desafio de Contos ^^.

Obrigado pelas palavras no RT, sempre gentil e doce.
Lindo fim de semana pra tu, cheio de paz e poesia...

:**********

André disse...

Quando li o seu texto, impressionou-me o clima de tensão, as imagens que criou, os preparativos para a guerra. Parece um prelúdio de uma ação épica.

o alquimista disse...

Olá passei por aqui e achei mágico o teu espaço, volto se não te importares...

Beijo

mac disse...

A tensão antes de entrar no palco da guerra...muitas vezes se pensa nas vítimas, mas poucas nesses homens e mulheres que dão a vida por uma causa, que eles acreditam justa.

rafaela disse...

Caro Pires,
o prazer é meu, de receber, na minha humilde cabaninha, tão admirado contador.
Fico feliz por ter gostado do meu texto, muito feliz mesmo, pois é uma honra receber a sua visita, que mesmo tardia foi atenciosa...

Sim, um bom começo (para mim) ser logo o famoso Pires a comentar o meu texto... ;) Estou orgulhosa!

Um beijo e uma abraço,
continuação de um bom fim de semana...

rafaela disse...

Public pervert,
não agradeças alguém ler-te, pois quem lê tamanha obra de arte é que deve, elogiosamente, venerar-te...

Também eu vou voltar ao teu blog, pois escreves com paixão e isso, isso é que é raro!
Aceita os meus elogios. Foram do coração...

Um beijo,
volta...

rafaela disse...

Querido Bill,
sempre atencioso e doce nas palavras e nos elogios...

É sempre preciso saber ser-se versátil. Eu estou a treinar essa e outras características da minha escrita, espero melhorar-me a cada texto, a cada frase, a cada palavra...

Obrigada pelo carinho :) muita simpatia da tua parte!!

Um beijo doce como as tuas palavras,
um fim de semana cheio de luz...

rafaela disse...

André,
quando lemos bons autores aprendemos, a pouco e pouco, a criar situações idênticas às que sentimos viver quando lemos uma situação...
Este texto é, de facto, o retrato de uma situação, de uma hora, de uma personagem e de uma guerra épica... Adoro as épocas passadas, as coisas que não vi, que não vivi, que não senti em mim e tento, no meu imaginário, vivênciá-las!
Trabalhar a imaginação é tão bom...

Obrigada pela visita, pelas palavras, pelos elogios...


Um beijo e um sopro...

rafaela disse...

Caro Alquimista,
uma vez que não é esta a tua estreia no meu cantinho (talvez não o reconheças por estar modificado), aprecio muito que tenhas, também desta vez, gostado do meu espaço.

Volta, claro que não me importo.
É sempre bom ter novos leitores...


Um beijo e um abraço...

rafaela disse...

Mac,
a tensão existe antes de cada passo que damos ao longo das caminhadas que todos os dias temos de fazer. Umas são mais evidentes, outras mais subtis, outras nem sequer lhes damos conta devido à frequência alucinante com que ocorrem e excitam todos os dias, em cada fôlego...

É preciso é saber, e ter coragem para, numa luta constante e por vezes injusta, continuar fiel aos seus princípios e às suas crenças.

Um beijo,
obrigada pela tua opinião sempre tão marcante!

Nandita disse...

Fica-me gravado nos olhos, no pensamento, este homem. E toda a diferença entre a sua rudeza e a sua força, e a delicadeza de uma fita e de um lenço, pureza no meio de guerra, flores em solo queimado... Quase o aceito, mesmo sem conhecer a batalha em que se envolve!

Rapariga, esquece lá a investigação e perde-te por aqui... sabe bem ouvir-te...

Beijo

rafaela disse...

Doce amiga Nandita,
em todos os solos queimados nascem flores, a questão é saber encontrá-las, fazê-las crescer e imortalizar-se...

Também em todas as guerras há lenços e fitas presas nos dedos entre as espadas e as feridas, e temos de aceitar os guerreiros (os guerreiros, e não a guerra), enquanto pessoas que batalham por um ideal, provavelmente não o seu mas, afinal, o de uma nação à qual chamam casa.

A investigação e a biologia em descoberta, tal como as palavras... Hummm, não posso viver sem palavras, mas só de palavras também é difícil (sobre)viver... ;)

Um beijo de quem tão bem te escuta...

Klatuu o embuçado disse...

Como uma guerreira Goda!

P. S. Não há menos coragem num coração feminino.

Dark kiss.

Joker disse...

Uma batalha, um instante de forças medidas e adrenalinas desmedidas...o sangue ficou e escreveu a história, a historia renasceu e encantou...

Rafaela...fico sempre impressionada e agradavelmente enleada nas tuas palavras...hoje foram fitas e espadas...e amanã, que será???? Fico ansiosa á espera!

Ana P. disse...

Querida Rafaela, cheguei aqui e parei.
Parei para te ler, para sentir cada palavra e digo-te que escreves como se não houvesse amanhã...
Deixo-te um beijo

Anónimo disse...

será um texto ou um conto?
os fragmentos notam-se no texto...!
as fitas nuns e as espadas noutros...!
bravas palavras...!
escreves como cada palavra gostasse da outra.
belo... sim...belo.
fazes-me em certas palavras, semanticas ditas, a Anne Frank...!

Barão da Tróia II disse...

Excelente. Boa semana

rafaela disse...

Klatuu,
não conheço as guerreiras Goda, mas, porque guerreiras e porque as citas, devem ser grandes e nobres...

E não, não há menos coragem num coração feminino. O coração de uma mulher tem nobreza suficiente para abafar a luz de mil candelabros acesos na noite negra, Klatuu, tenho pena é que muitas não a encontrem...

Um beijo, de coragem, de uma mulher-menina...

rafaela disse...

Doce Magia,
sim, é só um instante. Um pequeno instante entre muitas fracções que moldam um momento. E, no entanto, uma dessas ínfimas fracções pode conter em si toda a luz que falta no resto do infinito!

Ainda bem que gostaste. É um enorme prazer receber-te em minha casa e ler por cá as tuas belas palavras.

Por amanhã espero, ansiosa, aguardando novos segredos e novas almas para contar...

Um beijo e obrigada por «magicares» o meu dia... :D

rafaela disse...

Ana P.,
e haverá amanhã? Não sei... Por isso coloco em cada palavra o fôlego de um dia, de um sopro, de um sorriso, de uma vida, porque nunca saberei o que amanhã serei...

Um beijo recebido o teu,
grata pelas tuas palavras!

rafaela disse...

Fontez,
nem eu mesma sei se é um conto ou um texto. E um desabafo? Pode ser? E uma fantasia, pode ser? E um momento mágico, pode também? Ou talvez um desaforo, um momento ilusório ou insano? Não sei, nem nunca poderei saber enquanto não me conhecer tão bem a mim mesma quanto espero.

As palavras gostam umas das outras. Até mesmo os antónimos, vê lá! ;)
Adorei Anne Frank quando li... Tanta simplicidade e inocência deixam-me aterrada...

Obrigada por estares sempre aqui...
Um beijo, fragmentado, como as fitas e as espadas...

rafaela disse...

Caro amigo Barão da Tróia, o segundo,

obrigada. Uma boa semana também.

Beijo!

PAULO SANTOS disse...

Fabuloso!
É so o que me apetece dizer!
Levas-me em viagem com o poder das palvras e do detalhe.

Parabens!

Um beijo

Paulo

rafaela disse...

Paulo Santos,
obrigada pelas palavras. Tenho de treinar um pouco mais o detalhe e a coesão entre vários pormenores textuais, mas estou a tratar disso... ;)

Um beijo,
obrigada, sempre, por me fazeres sentir bem com as palavras...

Anónimo disse...

gosto de estar aqui dear Rafaela...!
sinto-me bem por aqui...!
...
ansioso pelo novo post...!

L. disse...

Ainda sem tempo, continuas brilhante.

;)

Um beijo.

rafaela disse...

Ainda bem que assim sentes, Fontez, é bom perceber retroacção aos nossos sentires e pensares. É tão bom ser-se lua e ver as estrelas, ao longe!

Quanto a novos posts... por enquanto estou demasiado sem tempo.
Custa-me imenso não escrever ou não ter tempo sequer para visitar os blogs que tanto alimento me dão à alma, mas entrei agora na faculdade, numa cidade que não a minha, numa vida em que não me encaixo, numa velocidade que não controlo e sinto-me meia perdida das minhas palavras e das minhas dimensões.

Espero voltar a escrever em breve senão sufoco. Espero ler-vos em tempo de ainda respirar.


Um abraço e um beijinho,
obrigada pela ansiedade que despertas às minhas palavras de se brotarem...

rafaela disse...

Nem imaginas, amigo, nem imaginas o quão sem tempo me tornei.

O Porto não sou eu, mas parece que se apoderou de mim e me roubou ao que eu era!

Só quero regressar...

Obrigada pelo apoio todo. Tens sido fundamental, Luís. Ainda que longe...

Um beijo, perdido, atarefado, cansado, mas ainda assim com uma vontade imensa de voltar...

Anónimo disse...

As tuas palavras sao como uma "colher xarope" para algumas inspirações da minha alma! Sao sim e obrigado por tal.
bjs e bom fds!
Regressa rapido! claro qd tiveres mais espaço e tempo. Bom começo na tua aventura academica da universidade, boa sorte e felicidades.

P.S. Já agora, curso e universidade? Apenas curiosidade saber tal.

rafaela disse...

Obrigada eu, Fontez...

Biologia na Faculdade de Ciências da Universidade do Porto. Sinto-me deslocada, confusa. É um mundo que não é o meu...

Mas eu volto... Estou a fazer-me de novo...

Um beijo,
um bom fim-de-semana

Anónimo disse...

conheço uma pessoa que se chama gonçalo q tb esta nesse curso e nessa universidade. é caloiro tb...
bom curso sim.
bons ares academicos te acompanhem! ;)

L. disse...

Acredito, pois, doce rafa…

E não estou longe. Se nunca estive, por muito que tenhamos corrido em direcções opostas, não será agora que meia dúzia de kilometros nos afastarão.

Fica em mim muito de ti, quando partes…e sei que me levas, quando viras costas. Isso é o importante. A distância? Mero pormenor! ;)

Um beijo, próximo de saudade consentida, quente de distância preenchida,
e meu, não do_rapaz.

rafaela disse...

Luís... que posso mais eu dizer que tu não conheças do meu eu? Eu sei que tu sabes o quão importante foste, és e serás para mim e para o que sou... Contruiste-me, também, sabes? E isso faz com que cada pedaço teu seja um pouco meu também...
Sei que a distância é relativa quando os corações são tão próximos, mas nunca me deixes morrer, prometes?

Levo-te comigo... para o Porto ou para o Nepal... :)

Um beijo, distante, mas sempre próximo...

Klatuu o embuçado disse...

Para dormires... ou não... :)=

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NOTA: só disponível até 30 de Setembro.

L. disse...

Prometo.

Até porque seria abrir portas à morte consentida.

Um beijo, e leva-me, quero ir.

rafaela disse...

Obrigada Klatuu,
muito de agrada receber mais de ti, saber mais do que és e do que gostas para melhor te compreender.
Mas melhor que "dormir" nestas músicas só mesmo adormecer nas tuas palavras...

Um beijo, obrigada!!
Vou dormir...

rafaela disse...

Ainda bem que prometes...

Levo...
Espero que me tenhas também na bagagem (eu sei que sim!)... :D

Beijo,
boa noite...