As viagens de Gulliver

Ele passeava-se, elevado, por entre a vasta multidão cinzenta, de olhares incendiários e incautos. Trazia num bolso sem fundo a verdade revelada em si, aconchegada em lenços bordados de ciência e de pensamento e, no outro bolso, mais pequeno, trazia a humanidade, a sua, que lutava para manter lúcida. A ingratidão dos Homens circundavam-no como mil demónios e quimeras em corredios incandescentes de rara luz pálida, prontos para lhe extorquirem as orelhas e a boca à dentada para que não mais ouvisse os Homens ou lhes falasse da grandeza das coisas por descobrir. Olhavam-no com desprezo e moléstia, como se olhassem a peste de perto e sentissem mais repúdio do que medo. Outrora ele tinha-lhes feito ver mais longe, apontado novos horizontes, mais nobres e mais verdes, no cume da montanha e eles, fragilmente humanos, passeavam-se incólumes à decência e queimavam a sua pele grossa com olhares de chama negra.

Un frais matin d'été 5 - Renoux

Quando o apanharam, desprevenido e apavorado, lançaram-se as sombras da ingratidão, controlaram os seus movimentos com finas cordas de mentira entrelaçada que se enrolavam no corpo inerte, impedindo que fugisse, que falasse, que voltasse sequer a cara para encarar de frente os que o prendiam com a maldade e a ignorância de uma mente corrompida por dogmas inultrapassáveis aos olhos dos pobres de espírito, pensando assim conter a verdade no seu bolso sem fundo.

Má sorte ou imperícia esqueceram-se de o drogar e assim, acordado, o pensamento continuava forte e invencível, intacto pela hipocrisia que lentamente definhava as cordas que o cercavam, como traças velhas.

Acéfalos, corriam felizes pelas ruas cujos esgotos se escoavam a céu aberto, gritando e cantando hinos roucos de vitória demais antecipada, inventando que tinham prendido a besta após sangrentas batalhas imaginadas pela luxúria que, mais à noite, se transformaria na carne branca de uma mulher embebida pelas canecas de cobre amolgado já vazias.

E no entanto, enquanto eles festejavam a infelicidade, julgando-se vencedores de coisa alguma, ele continuava firme e resistente às amarras preconceituosas enquanto eliminava, uma por uma, todas as falsas ilusões, todos os maus juizos, todas as afirmações erradas que obstruiam o seu bolso sem fundo. Quando este se abriu as finas cordas enrolaram-se sobre si, consumiram-se em si próprias, revoltando-se umas contra as outras e tornando as sombras cada vez mais atenuadas até que tudo desapareceu e se tornou nada.

Fez-se silêncio. O silêncio da verdade - que bem soava este silêncio.

Todos o tentaram venerar novamente, como antes, tentando a sorte de se remediarem uma outra vez. Mas ele sorriu, mordaz, voltou costas e partiu.

Haveria, um dia, de encontrar a ilha da esperança que tanto procurava, para que aí, descansado por fim, pudesse esvaziar, ao mesmo tempo, ambos os permutos bolsos sem que a verdade de um e a humanidade de outro se destruissem mutuamente.